A escolta da FEB pela Marinha do Brasil

Ao assinar a declaração de guerra do Brasil ao Eixo, em agosto de 1942, Getúlio Vargas, ao mesmo tempo em que colocava um ponto final naquilo o que podemos chamar de prólogo da nossa participação na Segunda Guerra Mundial, dava início à escritura do nosso primeiro capítulo no conflito. Arrastando-se há alguns anos, marcados por bastidores nem sempre harmônicos, os entendimentos políticos e diplomáticos entre Washington e o Palácio do Catete teriam continuidade após nosso ingresso na luta. Agora, com o País já oficial e integralmente comprometido com os Aliados, tais negociações ganhariam uma roupagem um pouco menos tensa. Uma das questões há muito discutidas dizia respeito à possível contribuição militar brasileira para o esforço de guerra. Por vários motivos, dentre eles os riscos de se armar e municiar um vizinho continental, demorou-se muito tempo para que este martelo fosse batido. Decorrido quase um ano desde nossa entrada na peleja, em 9 de agosto de 1943, finalmente, seria institucionalizada a criação da Força Expedicionária Brasileira. Nossos militares não mais se limitariam a proteger nosso extenso litoral. A efetiva ação da FEB na conflagração, porém, continuou a gerar incertezas. Foi somente no semestre inicial de 1944 que as cores do acerto assumiram tons mais fortes.

Foi com certa lentidão que, do papel, a FEB passou a apresentar formas mais delineadas. A quase paralisia inicial das inúmeras providências relativas à força era notória e, para muitos, incômoda e inexplicável. Essa foi a tônica nos primeiros meses, quando o tamanho e emprego da tropa apresentavam-se como itens de uma imensa lista de debates em início de gestação. Afinal de contas, quantas divisões integrariam a FEB? Com o conflito em curso nos mais diversos oceanos e continentes, para onde ela se dirigiria? Quais seriam suas atribuições? Muitos passaram a desconfiar, inclusive, de sua efetivação. Seria mais fácil uma cobra fumar ou nossos pracinhas irem à guerra? As dificuldades de recrutamento e composição das fileiras, passo inicial de todo o processo, constituíram-se como uma imensa preocupação para o comando do Exército Brasileiro. Alguém, talvez, já estivesse acendendo o cigarro (ou o cachimbo) da risonha serpente. Seguiam-se os meses de treinamento e muitas atribulações no campo de Gericinó. Aproximava-se a metade do ano de 1944 quando, finalmente, os planos foram definidos (ou quase isso). Nossos expedicionários, após extensos preparativos, seguiriam para a Europa (ou, talvez, para o Norte da África). No entanto, antes de adentrarmos nos meandros destas travessias, nos atenhamos a alguns dos seus elementos mais técnicos e gerais.

Comboio em forma de ataque.
Fonte: DPHDM

 

Um comboio convencional da Segunda Grande Guerra era integrado por duas partes: o trem e a escolta. A primeira, regida pelo comodoro, via de regra um oficial da Marinha Mercante, é constituída por um número variável de navios comerciais, alguns levemente armados. O trem precisa navegar em linhas e colunas, obedecendo a uma formatura pré-estabelecida e velocidade única e constante, essa imposta pela embarcação mais lenta. Navios que estejam produzindo fumaça excessiva (comumente os movidos a carvão) chamam muita atenção e devem ser segregados, passando a navegar isoladamente e em curso distinto: a “rota dos desgarrados”. Sempre às escuras, as unidades distam algumas centenas de metros umas das outras, esboçando um quadrado ou retângulo. Esse espaço relativamente curto leva os tripulantes a redobrar os cuidados, pois qualquer mínima diferença no ritmo pode causar transtornos de enormes proporções, como abalroamento, avanço ou atraso em relação ao grupo. Os comboios internacionais incorporavam de 50 a 60 navios, agrupados em nove a 12 colunas espaçadas de 600 a mil jardas. Em cada coluna, os barcos mantinham-se afastados de 400 a 600 jardas um do outro. Assim, o trem apresentava uma frente de sete e uma profundidade de aproximadamente três quilômetros.

A escolta, por sua vez, é formada por navios de guerra, encarregados da segurança e integridade do trem, que navega na parte interna do conjunto. Toda ela tem seu capitânia, cujo comandante é a autoridade máxima do comboio. Através de equipamentos de detecção de superfície e submarina, tais unidades realizam a varredura da área a ser percorrida, perfazendo uma rota mais livre (habitualmente em ziguezagues), todavia a uma distância nunca superior a duas ou três milhas dos seus protegidos. Também é sua função dar apoio de artilharia caso o oponente venha à tona para agir. As escoltas normalmente desatracam três ou quatro horas antes dos mercantes e os ficam esperando já fora do porto. Uma vez singrando os mares, a atenção é redobrada com os flancos, mais susceptíveis e vulneráveis a ataques submarinos, efetuados preferencialmente à noite ou nos crepúsculos matutino e vespertino, quando as silhuetas de suas vítimas se mostram de forma mais visível. Quanto à comunicação entre os componentes do comboio, esta era prioritariamente executada por rádio (em ondas VHF) ou holofotes. Esta mesma essência aplicava-se às escoltas especiais, incluindo às da FEB, sendo que, nestas, os numerosos trens davam lugar a um ou dois navios a serem protegidos pelas belonaves da escolta.

Inúmeros seriam os detalhes a serem definidos entre as autoridades militares brasileiras e estadunidenses no que diz respeito ao embarque a condução dos mais de 25 mil homens que integravam a FEB para o teatro de operações. A se considerar tal quantitativo, convenhamos, um quebra-cabeças nada simples de ser montado. A expertise aquirida com os anos pelos americanos, no entanto, contava a nosso favor. Afinal, desde que entraram no conflito, em dezembro de 1941, incontáveis já haviam sido as missões de transporte e desembarque de tropas por eles efetuadas no Pacífico, Norte da África e em outros locais. Um dos pontos convergentes era a necessidade, por razões de segurança, de se manter as manobras de embarque da FEB sob sigilo, intento difícil de se proceder na movimentada cidade do Rio de Janeiro, com seus milhões de habitantes. Neste sentido, em especial na transferência ao cais dos primeiros efetivos, recorreu-se a movimentações diversionistas. Outra decisão: não possuindo a Marinha do Brasil navios capazes de conduzir uma tropa tão numerosa, caberia à US Navy ceder algumas de suas embarcações para a tarefa. Neste caso, unidades da colossal classe P-2, capazes de abrigar mais de 5 mil militares. A nossa força naval, porém, não seria excluída das missões. Nos navios ianques seguiriam oficiais de ligação da nossa Armada, a exemplo do capitão de fragata Raul Gonçalves de Sousa e dos capitães de corveta Arquimedes Pires de Castro e Antônio Teles Bardy.

Todos os cinco escalões da FEB, que partiram do Rio de Janeiro para a Itália desde meados de 1944, foram escoltados por unidades da Marinha do Brasil em suas viagens a bordo dos navios-transporte norte-americanos. Na verdade, por razões sobretudo técnicas, somente alguns trechos destas jornadas receberam a proteção brasileira. O 1º Escalão, que desatracou do porto da então capital federal em 2 de julho de 1944, sob a batuta do general Zenóbio da Costa, a bordo do USS General W. A. Mann, foi escoltado até o Recife pelos modernos e recém-incorporados contratorpedeiros Marcílio Dias, Mariz e Barros e Greenhalgh. Respondiam respectivamente pelas belonaves os capitães de mar e guerra Renato de Almeida Guillobel e Antônio Alves Câmara Júnior (ambos futuros ministros da Marinha) e Ernesto de Araújo. Ao largo da capital pernambucana, a escolta, então capitaneada pelo Mariz e Barros, foi passada à responsabilidade do cruzador USS Omaha e mais dois destroieres da U.S. Navy, que cumpriram a segunda etapa da translado até Gibraltar. Neste ponto, o General Mann passou a ser defendido por outros três contratorpedeiros aliados, que concluíram a condução dos nossos primeiros 5.075 pracinhas até Nápoles, onde aportaram no dia 16 daquele mês.

Ao ser substituída a escolta brasileira na altura do Recife, o então general Mascarenhas de Morais, comandante da FEB, e que seguiu para a Itália junto com o 1º Escalão, transmitiu a seguinte mensagem ao comandante Câmara, responsável pela proteção dos nossos expedicionários: “Em nome dos brasileiros aqui a bordo, que partem para a linha de frente, a fim de continuar o glorioso trabalho de nossa Marinha na defesa de nossa soberania, apresento minhas despedidas, gratíssimo pela vossa excelente proteção antissubmarino”. O bordo do contratorpedeiro Mariz e Barros, o comandante Câmara, por sua vez, respondeu ao general Mascarenhas nos seguintes termos: “Os representantes da Marinha do Brasil tiveram grande honra de comboiar vossas forças e fazem votos de todo o sucesso para maior glória das armas brasileiras”. Antes de sua partida, nossos expedicionários já haviam recebido outra emblemática mensagem, esta do presidente Getúlio Vargas, que visitou as tropas, ao lado do general Eurico Dutra, na noite de 30 de junho: “Soldados do Brasil, o presidente da República aqui veio acompanhado do ministro da Guerra para trazer-vos os votos de feliz viagem. […]. O governo e o povo do Brasil vos acompanham em espírito na vossa jornada e vos aguardam cobertos de glórias”.

Contratorpedeiro Marcílio Dias.
Fonte: DPHDM

 

Decorridos pouco mais de dois meses, em 22 de setembro de 1944, o 2º e 3º escalões da FEB suspenderam em conjunto do Rio de Janeiro a bordo do USS General W. A. Mann e do USS General M. C. Meigs, respectivamente. Comandava o 2º Escalão, também formado por 5.075 expedicionários, o general Oswaldo Cordeiro de Farias, enquanto o 3º Escalão, contando com 5.239 homens, estava sob a responsabilidade do general Olímpio Falconiere da Cunha. Navegando como se formassem um mini comboio, os dois navios-transporte da Marinha dos EUA foram escoltados pelo veterano cruzador Rio Grande do Sul, sob o comando do capitão de fragata Edmundo Jordão Amorim do Vale, outro oficial que, no futuro, se tornaria ministro da Marinha. Integravam a escolta mais três belonaves estadunidenses: o cruzador USS Memphis e os destroieres USS Trumpter e USS Cannon, este último transferido à nossa Marinha meses mais tarde com o nome de Baependi. Nossos efetivos, os maiores transportados de modo simultâneo ao teatro de operações italiano, chegaram ao seu destino em 6 de outubro daquele ano.

Após mais alguns meses, em 23 de novembro de 1944, o 4º Escalão da FEB, formado por 4.691 militares e sob o comando do coronel Mário Travassos, deixou a baía de Guanabara com destino ao Mediterrâneo. Mais uma vez, serviu-nos de transporte o navio General Meigs. Compuseram inicialmente sua escolta o USS Omaha, o contratorpedeiro Marcílio Dias e o cruzador Rio Grande do Sul. Novamente, este foi substituído pelo Mariz e Barros ao largo do Recife. No estreito de Gibraltar, como de costume, toda a escolta seria rendida por outras unidades aliadas, chegando o comboio à “bota” italiana em 7 de dezembro de 1944. Finalmente, o mesmo General Meigs partiu do Rio de Janeiro, a 8 de fevereiro de 1945, portanto sete meses após a viagem dos nossos primeiros efetivos, conduzindo o 5º Escalão da FEB para a guerra na Europa. Comandava este derradeiro grupo, composto por 5.082 homens, o tenente-coronel Ibá Jobim de Meirelles. Mais uma vez, lá estavam formando a escolta dos nossos expedicionários os contratorpedeiros Greenhalgh e Mariz e Barros, da nossa Marinha, junto com o cruzador USS Marblehead e o destroier USS Mackenzie, este último reforçando a proteção no meio do Atlântico. O desembarque em território italiano se deu no dia 22 do mesmo mês.

Contratorpedeiro Greenhalgh.
Fonte: DPHDM

 

Vivendo-se uma realidade bélica e marítima teoricamente mais segura desde meados de 1945, quando a contenda na Europa já havia encontrado o seu fim, a proteção aos vitoriosos e laureados rapazes da Força Expedicionária Brasileira por nossos meios navais não mais se mostrou necessária. Diz-se teoricamente, pois sabe-se hoje que, mesmo meses após o Dia da Vitória no continente europeu, submarinos do Eixo, por algumas razões, continuaram a assombrar as águas do Atlântico. Seja como for, à exceção daquelas centenas de expedicionários que tombaram no solo que foram libertar, todos os demais retornaram sãos e salvos ao Brasil e ao seio de suas famílias. Nossa Marinha, porém, continuou a prestar serviços à FEB. Coube, por exemplo, aos contratorpedeiros Mariz e Barros, em março, e Greenhalgh, em maio de 1945, escoltarem o USS Florida, que trouxe feridos da FEB, de Trinidad, no Caribe, a Recife, passando por Natal. Mais tarde, o recém-incorporado navio-transporte Duque de Caxias, transferido da U.S. Navy, onde serviu sob o nome de USS Orizaba, sob a direção do agora capitão de mar e guerra Raul Gonçalves de Sousa, partiu de Tampa, na Flórida, com destino à Itália, de onde trouxe de volta ao nosso país o 4º Escalão da FEB, chegando no Rio de Janeiro em 17 de setembro de 1945.

Contratorpedeiro Mariz e Barros.
Fonte: DPHDM

 

Sobre as demais escoltas especiais realizadas ao longo da Segunda Guerra Mundial pela Marinha do Brasil, salientamos, dentre outras, a proteção aos navios-auxiliares José Bonifácio e Vital de Oliveira, subordinados à Força Naval do Sul, que ininterruptamente transportavam tropas e suprimentos às nossas bases insulares. As principais, situadas nos arquipélagos de Fernando de Noronha e Trindade e Martin Vaz, respectivamente ocupados por efetivos do Exército Brasileiro e do Corpo de Fuzileiros Navais. Da mesma forma, os auxiliares, quando possível, eram escoltados por nossas escassas e sempre atarefadas belonaves em missões de abastecimento das bases sediadas no continente. Além disso, não podemos deixar de mencionar, igualmente, a defesa dos denominados Soldados da Borracha, conduzidos sob os olhos dos nossos navios de guerra até a região amazônica a fim de extrair o látex, uma das cruciais matérias-primas necessárias à guerra. Terminado o embate, alguns números tratam de expor uma diminuta amostragem do que foi a nossa participação naval no maior conflito armado da história da humanidade. Coube à Marinha do Brasil, durante a guerra, escoltar 575 comboios, estes com 3.164 navios e mais de 16 milhões de toneladas brutas. Somente nos comboios, nossas belonaves percorreram cerca de 600 mil milhas náuticas, sendo perdidos apenas três navios sob a nossa escolta, representando ínfimos 0,09% do total. Embora discreta, uma campanha eficiente, que recebeu o reconhecimento dos nossos aliados e de uma Pátria aliviada e agradecida.