A travessia

Após o navio desatracar do cais do porto, era escoltado até o Estreito de Gibraltar por destroieres da Marinha de Guerra do Brasil e por navios da Marinha americana. Ao adentrar o Mar Mediterrâneo, a escolta foi realizada por navios americanos e ingleses, além de, a partir daquele momento, contar com cobertura aérea. A bordo, foram inúmeros os exercícios de alarme e abandono de navio, em face de as águas estarem infestadas de submarinos alemães e italianos. À noite, os militares precisavam ficar em escurecimento total, conhecido como disciplina de luzes e ruídos, para que nenhuma luz fosse vista ao longe.

 

Enéas Sá de Araújo recorda: “A travessia foi até gostosa, pois eu nunca tinha andado de navio. Eu havia embarcado no dia anterior; o navio saiu muito cedo, pelas seis horas. Eu acordei e senti que o navio estava andando. Eu me aprontei e subi ao convés. Ainda deu para ver a praia de Copacabana. O Corcovado estava envolvido pela neblina. Quando passou o navio, desapareceu a neblina e apareceu o Cristo Redentor”. Hélio Marques diz que essa imagem jamais saiu da memória: “Já no navio, seguindo pela Baía da Guanabara, o Cristo Redentor sobre a névoa que envolvia o morro era uma cena muito bonita. Parecia estar flutuando acima das nuvens”.

Ivan Esteves Alves diz: “A saída do Rio de Janeiro foi dolorosa. Saímos da Baía da Guanabara; o Cristo Redentor no alto do morro, diminuindo de tamanho… Aquilo deu um nó na garganta. Estava todo mundo amontoado no convés; só ficavam livres os espaços em torno das armas antiaéreas”. Samuel Silva complementa: “O Rio de Janeiro já estava ficando longe. A gente via as montanhas, o Corcovado; a praia era apenas uma fitinha branca. Passamos a ver só céu e mar. Rumo: desconhecido!”.

As noites eram abafadas, o balanço do mar e a alimentação eram diferentes, transformando a viagem no primeiro desafio enfrentado pelos brasileiros. No entanto, para aliviar as agruras da longa jornada, eram exibidas sessões de cinema e programados jogos a bordo, além do apoio espiritual de capelães de três credos diferentes.

Nos relatos a seguir, extraídos de “Vozes da Guerra”, de Sirio S. Fröhlich, os protagonistas falam sobre medos, angústias, fé, lazer e descontração de marcaram a viagem entre o Rio de Janeiro e Nápoles.

Ivan Esteves Alves diz que, logo depois da nostálgica vista da costa do Rio de Janeiro, foram trazidos “de volta a realidade, com um treinamento para abandonar o navio. … Esse treinamento acontecia todos os dias; a gente sempre levava a sério porque podia ser real, mas geralmente avisavam que era treinamento”.

Uma das maiores dificuldades diz respeito à alimentação. Com um efetivo de cerca de cinco mil militares embarcados, as refeições eram servidas em sistema de rodízio. A cozinha funcionava 24 horas por dia, pois eram duas refeições diárias para cada homem. “Sempre havia filas para o rancho. Ao clarear o dia, já havia filas. Na hora de dormir, elas continuavam lá”, recorda Alcides Basso.

Como a cozinha funcionava diuturnamente, cada compartimento tinha horários específicos. Severino Raimundo de Oliveira recorda a rotina: “Três e meia da madrugada… Alvorada! Todo mundo saltava do beliche e corria para o café. Era uma maçã e café. Eu sou da região da Caatinga, no RN, e nunca havia comido maçã…”. Ary Abreu confirma: “A alimentação era totalmente diferente daquela a que estávamos habituados. Ovo sintético; café com leite e pouco açúcar – que é o certo –, mas nós consumíamos muito açúcar; a manteiga era fatiada, igual ao queijo – a gente recebia uma fatia de manteiga. O cartão de rancho era picotado a cada refeição”.

Pedro Solano Vidal também estranhou a comida fornecida pelos norte-americanos. Segundo ele, tinha um cheiro forte, mas era insossa, além de ser servida meio fria. “Chegava a sonhar com o arroz e o feijão preto, preparados pela minha mãe”, recorda. Paulo Pereira de Carvalho diz: “Abaixo do nível do mar fazia um calor infernal; fiquei 15 dias sem ir ao banheiro; só me alimentava com um pouco de leite e uma maçã”.

A falta de adaptação à comida, aliada ao balanço do navio, fez com que muitos dos pracinhas adoecessem logo após a saída do Rio de Janeiro. Taltíbio Custódio diz: “A viagem foi terrível; não parava nada no estômago. Quando o navio subia e descia, parecia até que o estômago ia sair pela boca”. Neraltino Flores dos Santos faz graça ao recordar que “chegava a juntar uns quatro ou cinco soldados em torno de um balde, fazendo rodízio, para vomitar. O calor, aliado aos enjoos, fazia com que o mau cheiro fosse muito grande”.

Para a maioria dos pracinhas, a travessia foi tensa e cansativa. José João Pereira recorda que, quando as coisas ficavam muito calmas, para deixar a tropa em estado de alerta, davam alguns tiros de canhão. Era o sinal para os treinamentos de evacuação das cabines e desembarque. Tinham de estar preparados para o caso de torpedeamento ou afundamento do navio.

Samuel Silva diz que, durante toda a viagem, tripulação e soldados faziam exercícios. “A gente não sabia se era exercício ou se podia ser valendo. O tempo todo, a gente andava de colete salva-vidas. Quando soava o alarme e se ouvia ‘postos de combate’, a tripulação saía correndo e tomava os seus postos, na metralhadora, no canhão, no posto de observação. Nós tínhamos ordem, a disciplina correta de não atrapalhar, de deixar livre a passagem para que a tripulação pudesse agir rápido. Quando vinha a ordem ‘abandonar o navio’, era de modo ordenado. Saía um pelotão, depois outro. Todos os marinheiros tinham lugar certo e missão definida”. Hélio Marques confirma: “Os norte-americanos nos elogiavam muito; éramos uma tropa disciplinada, que seguia todas as regras de conduta a bordo”.

Nos depoimentos seguintes algumas impressões sobre a situação que mais atormentava os pracinhas. Ewaldo Meyer diz: “O meu alojamento era bem no fundo do navio. Em caso de torpedeamento, acredito que poucos escapariam vivos. A gente procurava nem pensar nisso. Vários companheiros tiveram ataque de nervos, por estarem em lugar fechado. Era lastimável ver um soldado caído, se debatendo… Vinha o pessoal de saúde e levava para a enfermaria. Foram quatro ou cinco casos, só no meu compartimento”.

Ivan Esteves Alves sabia que, caso algum compartimento fosse atingido, outros seriam fechados. “Ficaríamos submersos e morreríamos afogados. Havia medo, mas estávamos indo para a guerra e, como se diz, guerra é guerra”. Samuel Silva acrescenta que os homens dos mesmos grupos ou pelotões, geralmente, ficavam juntos nos compartimentos. “Nos compartimentos, parecíamos sardinha em lata, dispostos em prateleiras… Se necessário seriam fechadas as escotilhas. O lema era ‘melhor perder um compartimento do que, por causa dele, perder o navio todo’. As regras eram duras, mas tinham de ser cumpridas”, conclui.

Ary Roberto de Abreu diz que, mesmo sabendo que estavam sendo muito bem comboiados, tinham medo, pois os botes salva-vidas eram poucos para tamanho o efetivo a bordo. Ele concorda que os treinamentos de evacuação eram organizados, mas, no interior do navio, tudo era escrito em inglês; para quem não entendia, era complicado. “Pelos alto-falantes, davam a ordem de evacuação, por compartimentos; primeiro em inglês; depois, em português. Em inglês, para a tripulação; em português, para nós, passageiros. A gente subia ao convés, entrava em forma, e ficava lá por um tempo; mas sempre era rebate falso, graças a Deus. Pela manhã, todos os dias, todos subiam ao convés, para liberar o compartimento para a faxina”.

Israel Rosenthal conseguia se comunicar em iídiche. Assim, foi incumbido de ser o intérprete de um sargento americano que tinha a tarefa de entreter o pessoal a bordo. Entre as distrações estavam lutas de boxe. Quem vencia, ganhava um prêmio (maço de cigarros, chocolates, baralhos etc.); o segundo colocado também ganhava um prêmio; muitas vezes, igual ao do vencedor. Entreter os pracinhas era considerado uma missão especial, e como tal, lhe dava direito às mesmas três refeições diárias a que faziam jus os militares de serviço. “Eu ia ao refeitório; preparava o farnel e voltava ao camarote, onde dividia com os demais companheiros…”.

Cleto Pellegrinelli diz que havia missas e sessões de cinema. Das missas, recorda os belos sermões do Frei Orlando, nos diversos compartimentos do navio, onde ele improvisava um altar e levava conforto aos soldados. “Ele sempre destacava a seriedade do momento, de que estávamos indo para a guerra e não para um passeio. Muitos de nós vão morrer; outros voltarão feridos ou aleijados. Não é brincadeira, como acham que parece ser! Vamos para a guerra”, dizia. Frei Orlando veio a falecer em 20 de fevereiro de 1944, vitimado por um tiro acidental, em Bombiana.

Severino Gomes de Souza acrescenta um fato inusitado: em certo amanhecer, foram surpreendidos com o convés do navio coberto de poeira – era a areia do Saara carregada pelos ventos que se apresentava aos pracinhas.

Jarbas Dias Ferreira diz que “o momento de maior tensão foi quando informaram que os alemães sobrevoariam o nosso comboio. As baterias antiaéreas funcionaram. Depois tudo voltou à calma”. Para Geraldo Sanfelice os momentos de maior tensão foram a aproximação do continente africano e a travessia do Estreito de Gibraltar.

Samuel Silva diz que, “a partir da entrada do Mediterrâneo, a segurança era dos americanos e ingleses. A certa altura, o Gen. Mascarenhas dirigiu-se à tropa e comunicou que nós iríamos desembarcar no Porto de Nápoles, na Itália”. Enfim, o Teatro de Operações a ser enfrentado pela FEB era o do Mediterrâneo.

(Depoimentos extraídos de “Vozes da Guerra”, e adaptados pelo autor).