A guerra da Marinha Mercante

A Segunda Guerra Mundial chegou até nós antes que fôssemos a ela. E chegou pelo mar, meio através do qual incontáveis toneladas de mercadorias eram transportadas, mesmo diante dos perigos de um planeta conflagrado. Afinal, para o Brasil e para outras nações aliadas, a vida seguia. As necessidades apresentadas por “ilhas” como o nosso país falavam mais alto do que a real possibilidade de ser atacado por um inimigo submerso e em constante vigilância. Na época, não se cogitava levar e trazer tantos bens por via área, algo mesmo hoje carente de maior expansão. Internamente, a malha rodoviária nacional era absolutamente inexpressiva. As estradas de ferro, mais estruturadas, também estavam longe de suprir nossas necessidades. Cientes dos torpedeamentos já em curso no Atlântico Norte, coube aos nossos marujos manterem-se a postos, conservando ativas nossas linhas de abastecimento e comunicação. Como que provido de guelras, nosso país respirava graças às águas fluviais e (sobretudo) marítimas.

Ainda em março de 1941, quando sequer havíamos rompido relações diplomáticas e comerciais com o Eixo – o que ocorreria somente em janeiro do ano seguinte –, o navio Taubaté, do Lloyd Brasileiro, foi abrupta e inexplicavelmente atacado por uma aeronave da Luftwaffe enquanto navegava pelo Mediterrâneo. O conferente José Francisco Fraga, tripulante do navio que seguia do Chipre para Alexandria, no Egito, é considerado nossa primeira vítima fatal no conflito. Buscas por explicações e protestos por parte do Palácio do Catete de nada adiantaram. Palavras ao vento que por muitos tiveram de ser engolidas, cogitando-se ter sido o episódio um fato isolado. Contudo, infelizmente não o foi. Depois de anunciarmos oficialmente nossa solidariedade aos EUA, hostilizados no Pacífico pelos japoneses, a ofensiva contra nossa navegação mercante foi sistematizada. Primeiramente no Atlântico Norte; mais tarde, em nossas águas, sob os olhares assustados dos brasileiros. Aproximando-se aos poucos, o oponente aqui chegou.

Entre fevereiro e julho de 1942, foram pelo menos 13 navios de bandeira brasileira atacados, resultando em mais de 130 mortes. Tais embarcações navegavam de acordo com as normas internacionais então vigentes, estando devidamente identificadas. Estampavam sua condição de pertencentes a uma nação neutra, apesar do nosso rompimento com Berlim. Não poderiam – ou pelo menos não deveriam – ser ultrajadas. Mas foram. Dentro da trágica sequência de episódios, os mais letais vitimaram o Cabedelo e o Cairu, com 54 e 53 mortos, respectivamente. O primeiro simplesmente desapareceu na altura das Antilhas, em fevereiro, constituindo-se como um mistério até hoje não desvendado. O segundo foi torpedeado no mês seguinte, a cerca de 130 milhas do porto de Nova York. Além destes, também foram perdidos o Buarque, o Olinda, o Arabutã, o Parnaíba, o Gonçalves Dias, o Alegrete, o Pedrinhas, o Tamandaré, o Piave, o Barbacena e o Comandante Lira, este nosso primeiro mercante atacado no litoral brasileiro.

Foi em agosto de 1942, no entanto, que a infâmia berrou de forma mais estridente, elevando a um novo patamar, em nossa pátria, o chamado Alegre Massacre. Entre os dias 15 e 17 daquele mês, portanto em 24 horas, nada menos que cinco navios nacionais foram a pique entre a Bahia e Sergipe, ocasionando mais de 600 mortes. Em sua imensa maioria civis, a exemplo do que ocorreu no primeiro semestre daquele ano. Abrindo esta fatídica sequência, foram torpedeados o Baependi, o Araraquara e o Anibal Benévolo, em mares sergipanos, não distante da foz do rio Real, divisa com a Bahia. O nome do seu algoz viria à tona mais tarde: o U-507, comandado pelo capitão de corveta Harro Schacht. Tomando a rota para o sul, horas depois o submarino faria mais duas presas. Na altura de Morro de São Paulo, em águas baianas, o Itagiba foi atacado. A seguir, o Arará, enquanto recolhia os náufragos do primeiro, foi também vitimado pelo U-boot. Incluída a barcaça Jacira à lista, no dia 19, a situação tornou-se insustentável.

Estes ataques, fartamente temperados por pressões diplomáticas e pelo clamor de parte da população, sobretudo nas maiores capitais do país, levou Getúlio Vargas a finalmente assinar nossa declaração de guerra contra a Itália e a Alemanha (por questões que aqui não cabem, a declaração contra o Japão somente ocorreria em junho de 1945). Agora imersos, de fato, na guerra e com o amplo suporte norte-americano, nos preparamos para lutar no maior conflito armado da história da humanidade. Diante das nossas numerosas e visíveis limitações, cumprimos bem o que nos cabia. No emaranhado de providências a serem tomadas, constava a formação dos comboios, onde os navios mercantes, em grupos, passariam a ser protegidos por belonaves nossas e aliadas. Mesmo assim, tivemos de lidar com novas baixas, uma vez que tal sistema de defesa começou e atuar relativamente tarde e com algumas fragilidades. Sem se dar ao luxo de manter seus vapores atracados, o País perderia mais 12 navios até o fim da contenda, com mais de 230 mortes.

Neste último período de hostilidades contra a nossa navegação, entre setembro de 1942 e outubro do ano seguinte, pesaram especialmente os ataques contra o Antonico e o Afonso Pena. O primeiro, pertencente a uma armação de Belém, no Pará, teve seus náufragos covardemente metralhados pelo U-516, sob o comando do capitão-tenente Gerard Wiebe, após ser afundado na costa da Guiana Francesa. O segundo, no princípio de março de 1943, quando o Comando da 4ª Esquadra garantia estar nossos mares livres dos lobos inimigos, teve o maior número de vidas humanas perdidas nesta derradeira fase da guerra, 125, causando extremo mal-estar no País. Além destes, foram igualmente perdidos neste intervalo o Osório, o Lajes, o Porto Alegre, o Apalóide, o Brasilóide, o Tutóia, o Pelotaslóide, o Itapagé, o Campos e o Bagé, este o maior dos nossos mercantes atacados em todo o conflito. À exceção do navio auxiliar Vital de Oliveira, torpedeado no litoral fluminense em julho de 1944, nossa navegação não mais seria alvejada.

Um dos maiores símbolos da guerra passiva por nós travada, a Marinha Mercante, seus homens e sacrifícios jamais devem ser esquecidos. Aliás, faz-se imprescindível que não somente os seus feitos e perdas, mas também os da Marinha do Brasil, da Aviação de Patrulha da FAB, dos denominados Soldados da Borracha e demais instituições e combatentes nacionais envolvidos em nosso esforço de guerra cheguem a um maior número de pessoas. Se a própria Força Expedicionária Brasileira e o 1ª Grupo de Caça, que estiveram em combate na Itália, já não são devidamente reconhecidos, o que dizer daqueles que se postaram na retaguarda, defendendo o nosso território e mantendo ativas as linhas comerciais, vitais para a nossa sobrevivência? Guerras se ganham com soldados, mas, como já comprovado pela própria Segunda Guerra Mundial, igualmente com uma logística eficaz. Na construção da nossa custosa vitória sobre o nazifascismo, muitos puseram seus tijolos no grande castelo da Democracia e da Liberdade.